Queila Martins
Uma das ideias mais interessantes ao se estudar contratos é aquela que nos faz compreender que o contrato não é um mero documento assinado entre as partes. O contrato tem vida, se desenvolve em um contexto social, econômico e histórico que vai se modificando no decurso do tempo. Um contrato que tem previsão – por exemplo – de se desenvolver em um prazo de 36 meses, está sujeito à uma história a ser vivida nesses três anos. Se pensarmos em nossas vidas, quantas coisas fazemos no decurso de 36 meses? Podemos casar, nos mudar de cidade e até de país. Podemos ter um filho, mudar de emprego, entre outras coisas que a vida pode nos desafiar. Porque o desenvolvimento de um contrato seria diferente? Nenhum instrumento contratual – por mais bem elaborado que seja – pode prever todas as circunstâncias da vida e todos os cenários possíveis para o futuro. Não se pode prever com certeza uma crise mundial, uma guerra, uma tragédia, nem mesmo uma falência ou morte. Também é imprevisível uma mudança de gestão em uma empresa, uma enchente, um raio ou um desentendimento. Estes são apenas alguns exemplos de situações que podem ocorrer e que – mesmo que previstas genericamente em cláusulas contratuais – os seus efeitos, os resultados e consequências que podem gerar, por vezes, ultrapassam – e muito – qualquer previsão contratual.
Na construção civil, obras de infraestrutura de grande porte são desenvolvidas no decurso de vários anos. São exemplo disso a construção de portos, pontes, aeroportos, estradas, hidroelétricas, túneis e obras pesadas, estando tipicamente enquadradas neste caso as edificações industriais. O projeto, a execução e o acompanhamento de tais obras requererem expertise específica em temas como resistência de materiais, tecnologia dos materiais construtivos, mecânica dos sólidos e solos, geotecnia, cálculos estruturais e técnicas de construção. Também requerem conhecimento de áreas de gestão de pessoas e finanças. É necessário atender, ainda, as legislações ambientais e de limitação do direito de propriedade, previstas em regulamentos específicos dos órgãos públicos reguladores, autorizadores e fiscalizadores de tais construções. Portanto, a construção de obras de grande porte impõe a necessária interdisciplinaridade entre as áreas da engenharia, administração, economia, finanças, contabilidade, direito, entre outras. E, por envolverem tantas áreas do conhecimento, certamente envolvem um grande número de pessoas que administram, executam tarefas e decidem os destinos da obra. Neste contexto de desenvolvimento da construção, além da contingência natural do decurso do tempo, a racionalidade humana certamente envolverá discussões, divergências, dúvidas e conflitos.
Foi em um desses casos de conflito, pelos idos de 1960, que os americanos previram um método de solução de controvérsias para obras de engenharia: a Dispute Board. O conceito de Dispute Board surgiu de um Comitê Consultivo formado por quatro pessoas no projeto Boundary Dam, no Estado de Washington, cujos técnicos foram acionados para tomar decisões atinentes aos conflitos e às matérias correlatas. A ideia funcionou bem e o embrião da Dispute Board estava formado e começava crescer. Para a Engenharia, Dispute Board é um comitê formado por profissionais experientes e imparciais, contratados antes do início de um projeto de construção para acompanhar o progresso da execução da obra, encorajando as partes a evitar disputas e assistindo-as na solução daquelas que não puderem ser evitadas, visando a sua solução definitiva. Também existem casos e perspectivas de Dispute Board relatados na América Latina, conforme destaca Roberto Hernandéz García, em importante coletânea produzida como relatório de experiências.
Bastante comuns nos EUA, os DBs apresentam algumas vantagens: são compostos de profissionais experientes e conhecedores do tipo de obra em questão; esses especialistas visitam a obra periodicamente (a cada 90 ou 120 dias) e, portanto, têm mais chance de agir preventivamente do que quando consultores e advogados são chamados para remediar um conflito já deflagrado; os membros do Dispute Board interagem continuamente com as equipes do contratante e do contratado, criando um ambiente positivo de colaboração; o custo de um Dispute Board é baixíssimo quando comparado a uma arbitragem ou a um processo judicial; as soluções alcançadas são geralmente mais justas do que as emanadas de outras formas de julgamento.
A composição mais comum de um Dispute Board é um advogado e dois engenheiros. A razão para essa composição mista é dotar o Dispute Board de capacidade técnica e jurídica, o que facilita o entendimento das questões de campo e as particularidades contratuais. Tal possibilidade já é bastante utilizada pelo mundo, a exemplo do que ocorreu com o Projeto de Energia Elétrica do Centroamericano de Istmo, em Honduras, o alargamento do Canal do Panamá e o Projeto de Twin Tunnels da Linha de Metrô Sheppard, no Canadá, casos práticos bem detalhados em interessante artigo de Ribeiro e Almeida.
Um conflito não resolvido, ou mal resolvido, pode gerar rapidamente prejuízos financeiros, abalos anímicos, perdas sociais e rupturas entre famílias. E não raras as vezes as partes invocam a exceção do inadimplemento como forma de resolução, sendo que tal procedimento não é suficiente para efetivamente pôr fim ao litígio. Ao contrário, muitas vezes a situação se agrava e os conflitos se estendem por anos, causando prejuízos de toda ordem. Neste cenário, podemos vislumbrar casos concretos em relações de direito público, por exemplo, onde vemos obras públicas fantasmas, construções abandonadas, recursos de contribuintes que se sacrificam para pagar impostos e veem todo o empenho de receitas e despesas do Estado escorrerem pelos ralos dos embates jurídicos que se estendem no decurso dos anos, sem solução.
Muitas vezes os prejuízos são de difícil reparação e outros são, ainda, irreparáveis. Na seara das relações privadas não é diferente. Pensemos em containers parados em portos (gerando prejuízos diários de milhões e bilhões de reais), assim como, construções de grande vulto que aguardam decisões judiciais para seu deslinde, ou ainda, perícias que chegam levar de dois a três anos para serem finalizadas, enquanto moradores de edifícios sofrem com vazamentos nas obras, problemas em encanamentos, áreas de lazer inacabadas, brigas de vizinhos, disputas em inventários e partilhas, entre outros processos que poderíamos mencionar a título de exemplo.
É por tudo isso que sustentamos que a inclusão da Cláusula Dispute Board nos procedimentos negociais de longa duração – permitindo a instalação da Junta de Resolução de Conflitos desde a assinatura do contrato até a finalização de sua execução – pode contribuir para a prevenção de conflitos e, caso instalados, a sua solução. Este método precisa ser melhor estudado e difundido no Brasil, pois colabora com os meios extrajudiciais de solução de conflitos, contribuindo para a construção de um novo paradigma que vem sendo desenhado na Ciência Jurídica contemporânea, que é a Cultura do Consenso, a qual está sendo realizada a partir de um aprimoramento cultural e social, fundamentado em teorias negociais mais pacíficas, diplomáticas e de melhores resultados econômicos.
Leia este e outros artigos de interesse sobre os Masc’s na página da versão da digital da RCSC – Revista Catarinense de Solução de Conflitos: http://www.fecema.org.br/rcsc
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