Um novo Código de Processo Civil. Com ele, uma nova perspectiva de pacificação dos conflitos

Quitéria Péres
Juíza de Direito (TJSC), mestre em instituições jurídico-políticas (UFSC). Especialista Lato Sensu em Direito Civil (Univali), Direito Penal e Processual Penal (FURB). Gestão e controle no setor público (Udesc/ESAG). Autora dos cursos online “Sentença Cível Descomplicada” e “Conciliação à luz do NCPC”, disponíveis na plataforma da Udemy.
O novo Código de Processo Civil já não é mais tão novo assim. Está completando seu segundo aniversário de vigência. Todavia, ainda pairam dúvidas acerca da dimensão da mudança proposta, a qual, por certo, deveria ter ultrapassado a mera alteração da letra da lei para alcançar nosso mindset, ou seja, nosso modelo mental, assim entendido como a forma com que enxergamos o mundo. No caso, o mundo jurídico.
Afinal, se o intento fosse apenas promover alguns ajustes procedimentais e criar novos institutos processuais, simples reforma legislativa seria suficiente. Muito diferentemente, este novo Código de Processo Civil propõe uma verdadeira mudança de paradigmas ao direcionar o olhar para além da superficialidade da linha do horizonte de modo a observar, além da ponta do iceberg (entendido como os problemas de administração judiciária retratados nos dados estatísticos), também, senão especialmente, toda a gama de fatores que compõem a estrutura sobre a qual se assenta, de fundamental importância, embora não aparente por que submersa. Esta analogia com um iceberg, concebido em toda sua integralidade (para além do aparente) também pode ser empregada para retratar a concepção do conflito na perspectiva de sua pacificação, a qual pressupõe um olhar sob espectro bem mais amplo e profundo do que se propunha, até então, com a mera resolução da lide pela via adversarial.
É chegado o momento de rever nossa postura, como operadores do Direito, em relação à missão assumida. Lidamos com o conflito humano, como matéria prima, daí por que não podemos deixar de considerar o conjunto de circunstâncias, sobretudo emocionais, que moldam a história dos interlocutores envolvidos. Firmada tal premissa, facilmente compreendemos que não há outra forma de viabilizar isso que não por meio do diálogo, desenvolvido construtivamente, sob a intermediação de um facilitador, no caso, o conciliador ou mediador, profissional imparcial e isento de qualquer preocupação em relação à tarefa de julgar. Estamos tratando, como se percebe, da audiência de conciliação ou de mediação.
De notar que, originalmente, tal momento dedicado à tentativa de conciliação tinha lugar apenas por ocasião da audiência de instrução e julgamento, a qual, quando designada, ocorria no final da tramitação processual, quando já esgotada a fase postulatória (onde se dão os debates processuais) e de saneamento. Contudo, reconhecendo sua tardia designação, ainda na vigência do CPC anterior (1973), tal momento foi antecipado para a fase de saneamento, o que se deu com a previsão da audiência de conciliação e saneamento (art. 331 daquele Código), então facultativa. Não satisfeito, percebendo que o diálogo deve ser oportunizado antes do confronto, o legislador tratou de antecipar ainda mais o momento da conciliação justamente para permitir tal exercício de legitimidade e empoderamento logo no início da tramitação processual, antes de instaurado o embate propriamente dito (o que normalmente ocorre quando as partes exercem, com o contraditório, o direito de defesa, valendo-se, para tanto, das armas argumentativas, probatórias e jurídicas que estiverem ao seu alcance). Não seria desarrazoado crer que tal antecipação se repetirá num futuro próximo para contemplar o momento conciliatório antes do ajuizamento da demanda, como verdadeira condição de procedibilidade.
Feito tal exercício de futurologia, importa atentar para nossa postura hoje em relação aos conflitos com os quais lidamos profissionalmente no âmbito do sistema de Justiça que, direta ou indiretamente, integramos. Imbuídos do mais legítimo respeito a cada ser humano envolvido num conflito, resta-nos acreditar que ele reúne todas as condições necessárias à adequada análise da situação vivenciada e, por conseguinte, à identificação das alternativas de solução e escolha da que lhe afigurar mais adequada. Tudo isso, mesmo numa demanda já judicializada, pode se dar num ambiente cooperativo, marcado pelo diálogo desenvolvido mediante escuta ativa e empática, segundo condições compreendidas e aceitas pelos envolvidos. Sob a garantia do princípio da independência, as partes podem propor a designação de nova sessão para permitir mais amplo diálogo das propostas formuladas ou até mesmo a alteração procedimental (por meio de negócio processual, previsto no art. 190 do CPC), a exemplo da antecipação da prova pericial quando necessária ao esclarecimento de controvérsia que pressuponha conhecimento técnico, restabelecendo-se logo após o diálogo por meio de nova sessão conciliatória.
O papel conferido ao conciliador ou mediador, por sua vez, assume grande importância em sua missão de intermediar/facilitar a busca do entendimento por parte dos envolvidos no conflito, assegurando-se que, no curso do caminho, mantenham o foco na resolução (perspectiva pacificadora) e não na atribuição de culpa e de sanção (perspectiva adversarial). Isso porque, com fome de paz, mas sem saber como fazer para saciá-la, não raramente as pessoas esquecem do quão gratificante é falar e ser ouvido, compreender e ser compreendido, enfim, participar da tomada de decisão em relação ao que, por algum motivo, mereceu importância em sua vida. Não se está tratando da quantidade de passos ou da velocidade com que se caminha, mas sim da direção assumida e principalmente da satisfação da caminhada, esta entendida como a própria vida.
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